26 julho 2006

Um Caso Doloroso

Ele é negro, aparenta ter uns 45 anos, não chega a ser obeso, mas não é um magrelo, como eu. Usa o cabelo bem curto, praticamente raspado, para disfarçar a calvície no topo da cabeça, formando uma meia-lua com as têmporas. Veste uma camisa azul e uma jaqueta vermelha, roupas da empresa onde trabalha como cobrador. Ela é bem mais nova do que ele, loira, tingida, mas não muito distante da realidade, branca cor de leite. Usa óculos, tem os olhos castanhos e uma grossa aliança dourada na mão direita. Todo dia eles se encontram no Ônibus 3139, Pça Clóvis: ele trabalhando, ela indo para o trabalho. Quando eu entro no ônibus os dois já estão conversando e a conversa só termina na Rua da Mooca, depois de cruzar a Paes de Barros, onde ela desce. Eu disse conversar, mas o termo certo seria discursar. Ela raramente fala, mas ele parece não possuir freios. Com seu jeito calmo e confiante, seus olhos pequenos e seu ar seguro, ele passa praticamente todo o percurso dissertando sobre assuntos que desconheço, pois ensurdeço-me pela música nos fones em meus ouvidos (melhor assim, dá-me liberdade de imaginar a conversa). Ela passa o tempo sorrindo, olhando atentamente para ele, acenando com a cabeça e admirando-o com os olhos. Sentado em sua cadeira, com sua jaqueta vermelha, ele parece um rei, e ela, sua mais fervorosa súdita. Pelo que percebi, ele costuma guardar as sacolas dela nos braços de seu trono: uma bolsa comum e uma sacola de algum encontro de fisioterapia. Ela parece realmente amá-lo, ele parece gostar da companhia dela.

Vendo essa cena diariamente, lembrei-me do conto "Um Caso Doloroso", do James Joyce (parte de Dublinenses). Talvez tudo isso termine em tragédia, talvez somente em dor e esquecimento. Não saberia dizer. Talvez ela seja infeliz em seu noivado. Talvez ele seja o ponto alto do dia dela, o momento pelo qual ela acorda. Não sei novamente.

Hoje eles não estavam juntos. Ela estava um pouco afastada, virada para o outro lado, calada. Ele continuava em seu trono, fazendo seu trabalho como sempre, porém, pude sentir um quinhão maior de melancolia em seus olhos. Ela parecia irritada, emburrada. Ele puxou conversa com outras mulheres, mas nenhuma vingou. Talvez não fosse a mesma coisa.

[Edit]:
Dia 26: Ela não estava no ônibus. Talvez tenha acordado atrasada, ou talve alguma outra coisa tenha acontecido.
Dia 27: Hoje nem ele estava lá. Havia outro cobrador em seu lugar. Ela ainda não apareceu.


Explodingdog - it's so dark

7 Comments:

Anonymous Anônimo disse:

eu acho q vc repara demais na vida dos outros )=
(e eu passo tempo demais futricando blogs alheios, que no fim, é a mesma coisa)

quarta-feira, 26 julho, 2006  
Anonymous Anônimo disse:

Infelismente estou sem tempo de ler o texto q vc linkou...ainda mais no original, o q pede um pouco mais de concentração...
Mas achei muito legal a sua sensibilidade. Elegante!

quarta-feira, 26 julho, 2006  
Blogger Mário Henrique disse:

Eu estou pensando em digitalizá-lo (letra por letra) e trocar o link.

O conto é realmente muito bom.

ALiás, leiam James Joyce, sua alma imortal agradece.

quarta-feira, 26 julho, 2006  
Blogger jan disse:

Me deixa triste pensar que a maioria das pessoas vivem para pequenos momentos como esse. Não estou dizendo que não é prazeroso ou que não seja legal, mas... Só isso?

quarta-feira, 26 julho, 2006  
Anonymous Anônimo disse:

hmmm, será que o cara não é um daqueles que fica xavecando a mina todo o dia, e a mina não manda ele à merda por educação, ou algo assim?
porque nem tudo é tão bonito quanto a gente espera que seja...
^^

quinta-feira, 27 julho, 2006  
Blogger Mário Henrique disse:

você achou a história bonita? Hum... leia novamente.

quinta-feira, 27 julho, 2006  
Anonymous Anônimo disse:

Keep up the good work. thnx!
»

quinta-feira, 17 agosto, 2006  

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